A coincidência entre a recente chacina nas comunidades da Penha e do Alemão e o anúncio do julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que pode cassar o mandato do governador Cláudio Castro (PL) evidencia o colapso ético e político que marca o atual governo do Rio de Janeiro. O episódio escancara não apenas a falência da política de segurança pública fluminense, baseada em operações policiais brutais e ineficazes, mas também o esgotamento de um modelo de poder que se sustenta na violência, no clientelismo e na desresponsabilização institucional.
A chacina — que somou dezenas de mortos, entre eles moradores e suspeitos — ocorreu sob o discurso recorrente de “combate ao crime organizado”, expressão que se tornou uma justificativa genérica para ações desproporcionais e letais em territórios pobres. Em vez de política de segurança, o que se vê é uma política de guerra. O Estado, incapaz de oferecer direitos básicos, como educação, emprego e moradia, aparece nas favelas apenas por meio da repressão, reproduzindo o ciclo de exclusão e violência.
Nesse contexto, o julgamento de Cláudio Castro no TSE ganha contornos simbólicos. O governador é acusado de abuso de poder político e econômico nas eleições de 2022, em um esquema que teria envolvido o uso indevido de servidores e recursos públicos. O processo, portanto, não se restringe a uma questão jurídica, mas revela um modo de governar que normaliza a manipulação e a desigualdade como ferramentas de manutenção do poder.
É revelador que o mesmo governo que naturaliza chacinas e tenta justificar o inaceitável também enfrente acusações de corrupção e irregularidades eleitorais. Ambos os fenômenos — a violência policial e o autoritarismo político — são faces de uma mesma lógica: a de um Estado que se vê acima da lei e que age contra os mais vulneráveis.
A eventual cassação de Cláudio Castro não resolverá, por si só, a crise fluminense. Mas pode representar um ponto de inflexão moral e político. O Rio de Janeiro precisa romper com a cultura da impunidade e da violência institucional. A reconstrução do Estado passa necessariamente por uma política de segurança que reconheça os moradores de favelas como cidadãos e por uma política eleitoral que se fundamente na ética e na legalidade.
Enquanto o TSE se prepara para julgar o destino do governador, as periferias continuam a enterrar seus mortos. O tribunal, mais do que decidir o futuro de um político, julgará também o limite da tolerância da sociedade com um governo que fez da tragédia um método e da violência uma rotina.
O Rio de Janeiro vive, mais uma vez, o colapso de sua própria tragédia. A recente onda de violência, com cerca de 130 mortes em apenas alguns dias, escancara a falência completa do modelo de segurança pública adotado pelo governo Cláudio Castro — um modelo baseado quase exclusivamente na repressão policial, sem qualquer política consistente de inclusão social, prevenção da violência ou reconstrução comunitária. O que se vê nas ruas é o retrato de um Estado ausente, que só aparece nas favelas por meio do cano de um fuzil.
O discurso oficial do governo, centrado na “guerra ao crime”, tem se revelado um pretexto para operações brutais que ceifam vidas indiscriminadamente, transformando comunidades inteiras em zonas de combate. A lógica militarizada da segurança pública ignora o fato de que as causas da violência no Rio são estruturais — nascem da desigualdade, do desemprego, da exclusão e da falta de políticas públicas efetivas. Ao insistir em uma política de morte, Cláudio Castro reafirma a opção por um Estado que mata antes de escutar, que invade antes de dialogar.
As 130 mortes registradas não podem ser tratadas como “efeitos colaterais” de um suposto combate ao crime organizado. Elas representam o preço de uma política fracassada, que não busca proteger a população, mas sim demonstrar força e controle em meio à barbárie. As favelas continuam reféns do tráfico e das milícias, enquanto o Estado se limita a intervenções pontuais, espetaculares e ineficazes — ações que alimentam o ciclo de violência, em vez de interrompê-lo.
Imagem: Agência Brasil
A falência do governo de Cláudio Castro não é apenas administrativa; é moral e política. Quando o Estado naturaliza o extermínio de seus cidadãos, principalmente os pobres e negros das periferias, ele rompe o pacto democrático e revela seu viés autoritário. A ausência de políticas de geração de emprego, de acesso à educação, de urbanização e de fortalecimento da cidadania cria o terreno fértil para a criminalidade — e nenhuma operação policial é capaz de resolver aquilo que nasce do abandono social.
O que o Rio vive hoje não é apenas uma crise de segurança, mas uma crise de Estado. A guerra nas ruas é o reflexo de décadas de omissão e descaso, agora intensificados por um governo que aposta na violência como instrumento político e na morte como estatística. Diante das 130 vidas perdidas, a sociedade fluminense precisa questionar: quantas mais serão necessárias até que o poder público reconheça que segurança não se constrói com balas, mas com direitos?
Imagem: Jornal da Unesp
Enquanto Cláudio Castro se esconde atrás do discurso da ordem, o Rio de Janeiro sangra. E cada corpo tombado é a prova de que o verdadeiro inimigo não está apenas nos morros, mas no Palácio Guanabara — onde a inércia, o autoritarismo e a irresponsabilidade política decretaram a falência moral de um governo que já perdeu qualquer legitimidade para falar em segurança pública.
O Rio de Janeiro viveu hoje mais um capítulo de sua longa e dolorosa guerra urbana. A megaoperação policial deflagrada nos complexos da Penha e do Alemão, que resultou em mais de sessenta mortos, não é apenas um evento de segurança pública — é um retrato cruel da falência do Estado em garantir direitos, promover cidadania e mediar conflitos sociais de maneira legítima. O que se vê nas ruas da capital fluminense é menos uma ação de controle do crime e mais um sintoma de um país que normalizou o uso da violência como instrumento de governo.
Sob o discurso do “combate ao narcotráfico”, o poder público reafirma uma lógica militarizada que há décadas se mostra ineficaz. A retórica oficial — de “retomar territórios” e “impor a presença do Estado” — esconde o fato de que o Estado só aparece nas favelas com armas em punho, tanques nas ruas e helicópteros sobrevoando as casas. O resto do tempo, essas comunidades permanecem abandonadas, sem escolas de qualidade, saneamento, postos de saúde ou oportunidades de emprego. A ausência de políticas públicas é o terreno fértil onde o tráfico e as milícias se reproduzem.
A operação desta segunda-feira escancara também a seletividade da violência. As vítimas são, em sua esmagadora maioria, jovens, negros e pobres — o perfil que há muito tempo define quem pode morrer sem comoção nacional. As estatísticas de letalidade policial no Rio reforçam esse padrão: o estado lidera o ranking nacional de mortes causadas por agentes de segurança, e a impunidade ainda é regra. Quando a política de segurança se traduz em corpos, o que se perpetua é uma necropolítica — uma gestão da morte que escolhe quais vidas têm valor e quais podem ser descartadas em nome da “ordem”.
A cada operação “bem-sucedida” do ponto de vista do governo, o ciclo da barbárie se renova: moradores traumatizados, crianças sem aula, famílias destruídas e territórios ainda mais dominados pelo medo. A ausência de uma política social estruturante transforma o enfrentamento armado em espetáculo, e a guerra diária no Rio se converte em narrativa política — útil para governantes que lucram eleitoralmente com o medo e a sensação de caos.
O problema é que essa guerra não tem vencedores. O tráfico e as milícias se reconfiguram, o Estado se deslegitima e a população pobre continua entre o fogo cruzado. Enquanto a segurança for tratada como guerra e não como política pública, o Rio permanecerá refém de um modelo que naturaliza o extermínio e transforma a tragédia cotidiana em rotina.
A verdadeira paz não virá do barulho dos fuzis, mas do silêncio das desigualdades resolvidas — do dia em que o Estado chegar primeiro com escola, emprego e dignidade, e não com caveirão e munição. Até lá, a “guerra do Rio” seguirá sendo, mais do que um problema policial, uma ferida aberta na democracia brasileira.
Na madrugada de
segunda-feira, 27 de outubro de 2025, o bairro de Costa Barros, Zona
Norte do Rio de Janeiro, foi palco de mais um capítulo da guerra urbana
que marca a cidade. Um confronto entre as facções Comando Vermelho (CV) e
Terceiro Comando Puro (TCP) no Complexo da Pedreira resultou em pelo
menos quatro mortos — dois moradores, entre eles uma idosa de 60 anos, a
Marli Macedo dos Santos. (Termômetro da Política)
O que se passou
Segundo relatos da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMRJ), criminosos do CV partiram do Complexo do Chapadão para invadir o território do TCP no Complexo da Pedreira. A reação violenta incluiu intenso tiroteio e até uso de granadas. (RedeTV!)
No meio da fuga, dois dos invasores invadiram uma casa residencial. Dentro dela, Marli foi feita refém e acabou baleada. (O São Gonçalo)
Paralelamente, um dos moradores, o Elison Nascimento Vasconcelos, de 33 anos, foi atingido quando saía de um pagode e não resistiu. (Termômetro da Política)
Além das mortes, apreenderam-se sete fuzis, seis carros roubados e houve prisões de suspeitos. (Politiza Brasil)
No mesmo dia, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro reabriu a Unidade de Pronto Atendimento Costa Barros (UPA) — que havia ficado fechada por quase um mês em razão da insegurança — em meio ao tiroteio, com funcionários abrigando-se durante disparos. (O Dia)
Dimensões e consequências sociais
O episódio ilustra de forma brutal algumas das facetas da violência urbana no Rio de Janeiro, que vão muito além de estatísticas pontuais:
Território e Estado paralelo
A disputa entre facções ocorre em locais onde o Estado formal — segurança pública, controle institucional, acesso a serviços — se mostra fragilizado. Quando grupos armados disputam domínios e a tensão se transfere para dentro de residências, com vítimas alheias à contenda, fica claro que o controle estatal é precário.
Vitimas invisíveis, cotidiano interrompido
A morte de uma senhora dentro da própria casa, ou de um morador que apenas participava de uma festa, revela que o “risco” não atinge apenas quem faz parte da guerra — atinge quem vive em seu entorno, quem deveria estar protegido. O susto, o pânico, o viver sob a sombra de balas ou bloqueios passa a fazer parte da rotina.
“Depois de um tempo escutando dá para ter uma noção do que é uma 12, um AK e um FAL ou pistola” — relato em fórum sobre o cotidiano de tiroteios no Rio. (Reddit)
Serviços públicos fragilizados pela insegurança
A UPA que reabre sob os tiros é símbolo de uma contradição: serviços essenciais funcionam onde a violência não dá trégua. A área médica, tão necessária em contextos vulneráveis, convive com o risco alto. Funcionários e moradores sabem que o atendimento pode ser interrompido por razões de segurança — o que agrava as desigualdades.
Estigmatização e mobilidade limitada
As comunidades afetadas veem seu cotidiano e suas oportunidades reduzidas: acesso a transporte, comércio, saúde, educação — tudo se condiciona ao cenário de insegurança. A valorização imobiliária, o investimento em infraestrutura, a mobilidade social ficam restritos. O custo humano e material da violência impacta as gerações futuras.
Falta de perspectiva estrutural
Os tiroteios são manifestações violentas de problemas mais profundos: desigualdade social, falta de oportunidades, ausência de políticas públicas eficazes, precariedade da segurança, da justiça, da regeneração urbana. Enquanto as respostas se limitarem a ocupações esporádicas ou operações policiais, o padrão tende a se repetir.
Um olhar crítico necessário
Este incidente em Costa Barros exige que se vá além do registro jornalístico do número de mortos, feridos ou armas apreendidas. Ele demanda questionamento:
Quem venceu e quem perdeu? No fim, perderam os moradores, que viram sua casa virar linha de tiro.
Qual o papel do Estado? Se assumir território significa apenas reagir a tiros, sem presença cidadã, o espaço continua vulnerável.
Qual o custo para quem vive ali? A morte, sim, é o extremo. Mas o trauma, a interrupção da vida normal, o medo constante são danos invisíveis que moldam a existência desses cidadãos.
Qual a saída? Nenhuma política de segurança que ignore as raízes econômicas, as condições de moradia, a falta de escolaridade e emprego terá efeito duradouro. A “paz armada” nas favelas e periferias só se sustenta com justiça social.
Conclusão
O tiroteio em Costa Barros, nessa segunda, não é apenas mais uma ocorrência policial. É um retrato agudo de uma cidade que convive com zonas de guerra urbana, onde o Estado e a sociedade se medem mês após mês em termos de presença ou ausência. Em frente às estatísticas, sobram vidas marcadas, casas invadidas, medos que não se encerram com o nascer do dia.
Enquanto a narrativa dominante permanecer centrada na resposta emergencial — “fuzis apreendidos”, “prisões realizadas” — sem investir no reparo profundo da tessitura social, a próxima madrugada encontrará outros tiros, outros moradores reféns no próprio lar, e outra UPA reabrindo sob desconfiança. Até quando?
Cabo do 1º Batalhão da Polícia Militar em Santo Amaro, na zona
sul de São Paulo, o PM Marco Aurélio Bellorio trabalhou uma noite
inteira, das 18h30 às 7h. Ele conta que, de manhã, foi convocado por seu
comandante para participar de uma reunião no templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na avenida João Dias, no mesmo bairro. Bellorio, que é católico, se recusou.
Foi punido e respondeu a um procedimento disciplinar interno.
Indignado, o PM entrou com ação na Vara do Juizado Especial de Taboão da
Serra, na Grande São Paulo, e pediu indenização por dano moral por ter
sido obrigado a participar de reuniões no templo evangélico.
Ele alegava que houve abuso de poder e sua liberdade de crença não
fora respeitada. A justiça negou o pedido em junho do ano passado, e
acatou a justificativa do governo paulista de que a Igreja Universal
apenas estaria cedendo o seu templo para a realização de reuniões e
esses encontros não fariam referência a qualquer religião específica. O
PM recorreu, mas sem sucesso.
A recusa de Marco Bellorio de comparecer ao templo da Universal
ocorreu em janeiro de 2020. Agora, cinco anos depois, o processo
disciplinar contra ele foi reaberto depois da derrota que ele teve na
justiça. O PM, que continua na ativa, foi comunicado no início de
julho.
“O superior, quando quis me punir, perguntou quem eu achava que era.
Eu falei que sou um cidadão, um funcionário público. E não sou obrigado a
ficar ouvindo pastor. Eu vivo num estado democrático de direito. Apesar
de ser militar, e ter de cumprir ordens, não quero ouvir. Aí, ele ficou
me medindo”, contou Bellorio ao Intercept Brasil.
O PM, de 44 anos, formado em Direito e em licenciatura em Educação
Física e História, foi transferido para o trabalho na área
administrativa. Ele diz ter sofrido “perseguição interna velada” por
meio de várias transferências, mudanças de horários e ameaças de
superiores por causa de suas posições.
Em consequência, conta que teve problemas de saúde mental, desgaste
emocional e crises de ansiedade e depressão. No momento, faz tratamento
psiquiátrico, mas diz que a PM não admite os seus problemas de saúde.
Outros PMs vivem problemas parecidos na corporação. “Eu sou ateu e me
recusei a participar dessas reuniões com pastores porque eu não
concordo com isso”, me disse o soldado Marcelo, que trabalha em um
batalhão da PM na capital paulista.
“Quando os pastores chegam lá no batalhão de manhã, eu saio. Vão
sempre lá fazer um café da manhã. E, às vezes, tem reunião no templo.
Mas eu não vou. Sei que não sou bem visto pelos meus superiores por
isso. Tem colega que me chama de vermelho, de comunista, embora eu não
fique manifestando minhas posições políticas. Todos sabem, porém, que eu
sou ateu e de esquerda”, afirma Marcelo. “Eles levam uns livrinhos de
religião lá, mas ninguém pega. Os policiais dizem que não serve pra nada
isso, mas vão para não criar problema. Eu não vou porque não sou da
religião e não quero”, completa.
Bellorio e Marcelo são dois dos PMs de São Paulo que ousaram desafiar
a obrigatoriedade imposta por comandantes da Polícia Militar para que
seus subordinados compareçam às reuniões em templos da Igreja Universal
do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo. Esses encontros têm
se tornado cada vez mais frequentes e já se espalham atualmente por todo
o país.
O Interceptjá denunciou a doutrinação de policiais por pastores da Universal em reportagem de maio de 2023.
Soldados e cabos de batalhões inteiros da Polícia Militar, fardados e
usando carros de suas corporações – muitas vezes em horário de serviço e
outras em horários de folga – passam horas no interior de templos da
Universal ouvindo pregação de pastores. Em geral, os encontros duram em
torno de quatro a seis horas. Ao final, há uma oração e depois um
discurso do comandante do batalhão.
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que a Polícia
Militar e a Polícia Civil fazem “parcerias pontuais” para “utilização de
espaços”, sem qualquer tipo de convênio formal com entidades
religiosas. “Essas iniciativas são esporádicas, não envolvem nenhum
custo ao erário ou vínculo ideológico, político ou religioso”, afirmou a
secretaria, em nota.
“As forças policiais de São Paulo são instituições de estado que
atuam em plena conformidade com a Constituição Federal e com a
legislação estadual, respeitando integralmente a liberdade de crença e a
diversidade religiosa dos milhares de profissionais que integram seus
quadros”, argumenta.
O governo e a Secretaria de Segurança não responderam às perguntas do
Intercept sobre os casos citados na reportagem. Também não explicaram
se esses encontros poderiam ser realizados em espaços cedidos
eventualmente por uma religião de matriz africana, caso alguma delas
oferecessem.
“No meu batalhão, vi uma vez um colega que era da umbanda fazer um
ritual dele no quartel, uma oferenda, e ser chamado para dar explicação
ao comandante. Ele respondeu que se o pastor podia ir lá orar, ele
também podia fazer a sua manifestação”, contou o PM Marcelo.
Em 2023, mapeamos mais de 70 encontros organizados pela igreja de
Edir Macedo, por meio do projeto Universal nas Forças Policiais, o UFP,
criado em 2018.
Os eventos iam de pregação para as tropas fardadas nos templos a
cafés da manhã, orações, bênçãos e participações de pastores em eventos
de PMs, bombeiros, agentes da Polícia Federal, do Exército e da
Aeronáutica em 24 estados do país, além do comparecimento de religiosos
em solenidades de troca de comando com a cúpula das instituições.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, as secretarias de segurança e
as polícias envolvidas nos eventos foram questionadas sobre o efetivo
empregado, o que era feito nestes encontros e a existência de convênios e
contratos com a Universal. Nem todos responderam – mas todos os
retornos indicaram que as parcerias são feitas sem acordo formal, com
respostas contraditórias sobre o conteúdo oferecido nessas reuniões.
De 2023 a 2025, o número de encontros desse tipo aumentou. Em fevereiro, 2,5 mil policiais militares de São Paulo estiveram em reunião na sede
da Igreja Universal no bairro do Brás, região central de São Paulo,
para escolher suas vagas de trabalho no início do ano e conhecer os
locais nos quais foram classificados para atuar nas unidades militares
na capital paulista e no interior.O encontro durou 12 horas, das 7h às 19h.
O pastor capelão Roni Negreiros, responsável pelo projeto UFP, falou
sobre a necessidade de os policiais “renovarem a mente e equilibrar a
emoção e a razão no seu dia a dia”.
Citando a referência bíblica Romanos, capítulo 12, versículo dois, o
pastor afirmou: “E não vos conformeis com este mundo, mas sede
transformados pela renovação do vosso entendimento, para que
experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.
Inquérito para apurar doutrinação está em andamento no DF
O promotor Flávio Milhomem, da 3ª Promotoria da Justiça Militar do
Distrito Federal, pediu, em fevereiro do ano passado, uma investigação
sobre denúncia de que policiais militares estariam sendo obrigados a
participar de um evento de formatura na sede da Universal na Asa Sul.
O promotor solicitou, inclusive, o afastamento do tenente-coronel
Rodrigo da Silva Abadio, que teria imposto a obrigação de comparecimento
a cabos e soldados. Foi aberto um inquérito na Polícia Militar do DF,
que ainda está em andamento, informou o Ministério Público do Distrito
Federal.
Em São Paulo, o deputado estadual Paulo Reis, do PT, encaminhou logo
após a denúncia do Intercept representações ao Ministério Público
Federal e ao Ministério Público de São Paulo pedindo a apuração e
providências sobre o deslocamento de PMs, em horário de serviço, aos
templos da igreja. O Ministério Público Federal alegou que a competência
para a apuração era da esfera estadual.
O MP de São Paulo arquivou o pedido ao não ver “irregularidade
vislumbrada”, conforme informou ao deputado. Considerou também
“suficiente” a justificativa da Polícia Militar paulista de que a
Universal apenas cede o local para as reuniões com policiais “sem
nenhuma vinculação com a prática religiosa”, como avaliou o procurador
Saad Mazloum, do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo,
ao contrário do que dizem os policiais e ex-policiais.
Ex-PM e policial civil licenciado, o deputado Reis diz que a Universal, que já driblou a lei para contratar policiais militares como seguranças, está sendo beneficiada com essa decisão do governo de realizar eventos da polícia em seus templos.
“O estado é laico. Então, que o governo, ao menos, fizesse uma
licitação, uma concorrência pública. E a igreja que ganhasse o certame,
ficaria encarregada de cuidar dos policiais militares. É uma ironia,
claro, mas o governo não tem de estar atrás de igrejas para poder fazer
suas reuniões. O estado tem os seus estabelecimentos e equipamentos
próprios”, observa o deputado.
O ex-PM Leandro Prior, que integrou os quadros da Polícia Militar de
São Paulo entre 2014 e 2021, é mais um crítico dos encontros religiosos
em quartéis. Segundo ele, sempre houve nessas reuniões orações e
menções bíblicas.
“Isso não é de hoje e vem se aprimorando, cada vez é mais forte e se
espalha pelo país. Os praças (policiais) não gostam, nunca gostaram. A
igreja tenta passar a ideia de que é um culto ecumênico, como se todas
as religiões fossem contempladas, mas não é nada disso. Ali, há uma
captação da tropa”, critica Prior, atualmente coordenador da Setorial de
Segurança Pública do Diretório Estadual do PT em São Paulo.
Prior, que diz ter pedido exoneração da PM ao alegar perseguição em
razão de suas posições políticas e por ser homossexual, diz que a
Universal consegue cooptar apenas alguns soldados, “muitos que têm
problemas de depressão e ansiedade e estão perdidos, e chegam até a usar
psicotrópicos e ter tendências suicidas, como os próprios comandantes
têm conhecimento”.
Para o cientista político Guaracy Mingardi, doutor pela USP e
ex-investigador de polícia, é errado a PM obrigar ou instigar policiais a
comparecer a reuniões em templos religiosos. “Qualquer indivíduo,
militar ou não, tem o direito de seguir a religião que quiser, mas o
policial não pode frequentar cultos ou missas fardado e de forma
organizada, enquanto corporação. Se ele quiser ir, é problema dele. Mas
ser obrigado a ir, pressionado, é completamente errado. Está totalmente
fora de qualquer legislação, mesmo a militar. Ninguém é obrigado a ter
uma religião específica”.
“Quando um comando de companhia obriga o policial a ir, ele tem de
ser processado. Não temos uma religião obrigatória no país. A ideia da
Constituição foi exatamente essa”, diz. “O servidor público tem de estar
aberto para qualquer coisa, pois a população tem várias crenças
diferentes”.
Número de capelães da Universal nas polícias é quase o mesmo de padres católicos no Brasil inteiro, segundo pastor
O projeto Universal nas Forças Policiais diz ter como objetivo a
prestação de “assistência espiritual, social e de valorização humana aos
integrantes das forças de segurança pública, Forças Armadas e seus
familiares”, segundo Roni Negreiros, que é pastor e também major da
Polícia Militar do Maranhão. Ele foi capelão militar no estado por 18
anos. A função de um capelão é dar apoio espiritual a militares em
quartéis.
Negreiros afirma que a Universal conta hoje com 20 mil capelães no país.Para ter uma ideia da força,
esse é quase o mesmo número de padres da Igreja Católica inteira no
país – 22 mil, além de 500 bispos, segundo a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, a CNBB, entidade máxima dos católicos no Brasil. Ainda
predominantes no país, os católicos representam 56,7% da população,
enquanto os evangélicos somam 26,9%, segundo o último censo do IBGE.
A CNBB diz não saber quantos capelães católicos estão atualmente em atividade no país. Para citar um exemplo,
as Forças Armadas no Brasil contam com 162 padres e 67 pastores atuando
como capelães militares, de acordo com a Força Aérea Brasileira.
As ações da Universal desenvolvidas principalmente com as polícias
militares foram ampliadas também para outras corporações, como a Polícia
Civil, Polícia Federal, guardas metropolitanas, Exército e Aeronáutica
em todo o país.
Com essas outras forças de segurança, foram privilegiadas as visitas
às sedes das corporações, cafés da manhã, participações em solenidades e
trocas de comando e convites para policiais visitarem o Templo de
Salomão, o monumental centro religioso construído pela Universal no
Brás, em São Paulo.
Agora, a estratégia pode estar se ampliando para outras denominações evangélicas, como a Assembleia de Deus do ministério Madureira.
Foi depois de uma reunião no templo dessa igreja no bairro de Jardim
Alvorada, em Itapecerica da Serra, na grande São Paulo, que um soldado
da Polícia Militar de São Paulo morreu no dia 28 de maio.
Ronaldo Venâncio da Silva, de 33 anos, sofreu um acidente de moto na
rodovia Régis Bittencourt quando retornava para casa depois de trabalhar
das 19h30 do dia anterior até às 7h30 do dia seguinte. Em seguida, ele
teria sido obrigado a comparecer ao encontro na igreja.
Ficou 18 horas à disposição da PM e, cansado e sem dormir, acabou
sofrendo o acidente, denunciaram colegas. A Polícia Militar disse, em
sua nota, “lamentar profundamente o ocorrido” e informou que uma
sindicância aberta para apurar os fatos está em andamento.
Procurada, a Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira não
respondeu se, de fato, tem feito parcerias com instituições militares,
como a Universal. A Igreja Universal também não respondeu às perguntas
enviadas.